Que eu possa abrir minha casa como uma garrafa de vinho. Que eu possa sair de casa como uma garrafa de champanhe.
Que eu possa respeitar opiniões diferentes da minha. Que eu não tente convencer ninguém a pedir desculpas. Que eu possa me desculpar antes do ódio. Que eu possa descobrir a altura dos postes com pipas. Que eu possa pescar conhecidos nos viadutos. Que eu possa escrever cartas de amor de repente. Que eu possa viajar para adorar a distância. Que eu possa voltar para dizer o que não tive coragem. Que eu possa conversar com estranhos para matar a estranheza.
Que eu possa comprar fiado minha própria fé. Que eu amarre os sapatos dos filhos como se fosse um terço. Que eu possa gemer diante de uma torta de nozes. Que eu pense em meu amor ao atravessar a rua. Que eu pense na rua ao atravessar o amor. Que eu possa engolir o vento em cada esquina.
Que eu possa ouvir as cigarras de noite. Que eu possa diferenciar as árvores. Que eu erre um caminho para descobrir novas paisagens. Que meu carro tenha cheiro de bala de goma. Que eu ajude sem questionar. Que eu dê conselhos sem condenar. Que eu não exija demais dos outros. Que eu exija demais de mim. Que eu possa dançar com os pés nos ouvidos. Que eu possa aprender a tocar violino. Que eu possa aprender a dizer sim. Que eu possa tomar banho de cachoeira. Que eu possa madrugar para esquentar a água do chimarrão.
Que eu não acorde com o telefone tocando. Que eu não faça piadas de mau gosto. Que eu seja a vontade de rir. Que eu prepare pratos exóticos para aumentar a fome. Que eu não dedure os amigos para passar bem. Que eu pendure bonecos no varal. Que eu faça sinal para o trem parar. Que eu bata no tapete com a vassoura. Que eu assobie para chamar a alegria. Que eu possa chorar ao assistir filmes. Que aproveite a luz do corpo para ler de noite. Que eu possa embaralhar o sal com o açúcar. Que não faça fofoca fora do bar. Que eu não seduza para confundir. Que eu seduza para iluminar. Que eu mande flores para meu próprio endereço. Que eu estenda a toalha da mesa como se fosse um lençol. Que eu não sacrifique a confiança pela covardia. Que eu possa cuidar da minha cidade como um irmão caçula. Que eu use a voz como campainha.
Que eu possa repor os pássaros em seus ninhos. Que eu encontre uma loja para consertar chapéus. Que eu encontre uma loja para consertar cabeças. Que eu não mude de ideologia para conseguir um emprego. Que eu não precise gritar dentro de casa. Que os cachorros tenham faixa de segurança. Que eu possa devolver os livros que tomei emprestado. Que eu não peça a devolução dos livros que emprestei. Que eu tenha dúvidas, melhor do que certezas e falir com elas. Que a sorte não seja o cartão furado da loteria. Que eu possa barbear o medo.
Que meus amigos deixem de comprar o jornal pelos classificados. Que a única corrente que use seja a do balanço para embalar meu filho. Que a poesia não fique na estante mais escondida das livrarias. Que eu ligue mais para meus irmãos para falar menos dos outros. Que eu escute minha mãe falar de seus problemas até o fim. Que minha mulher possa entender o que nem preciso falar. Que eu conte meu dia na hora do jantar. Que eu cumprimente meu vizinho sem temer a resposta. Que eu possa dar as roupas que não uso. Que eu possa ler revistas antigas em consultórios. Que a cor da pele não seja maior do que a cor do céu. Que minha letra saiba montar no cavalo das linhas. Que eu ande de bicicleta para me demorar na cidade. Que eu cuide das plantas da mão alisando a chuva. Que eu não fique cobrando para me aliviar do trabalho.
Que eu aprenda a guardar segredos sem jurar por Deus. Que eu tenha menos vaidade. Que eu tenha mais realidade. Que eu invente mentiras convincentes para chegar às verdades. Que eu perca o pavor de supermercado. Que eu não brigue com o caixa pelo tamanho das filas. Que eu não pense na morte antes de dormir. Que eu volte a rezar sem querer. Que eu possa nadar na neblina. Que eu não tenha receio de ser ridículo. Que eu faça amizades falando do tempo. Que eu pare de fumar. Que os ex-fumantes parem com os sermões. Que eu escreva nos livros o que os livros me escrevem.
Que eu possa brincar mais sem contar as horas. Que eu possa amar mais sem contar as horas. Que eu possa puxar os cabelos do vento. Que eu use somente as palavras que tenham sentido. Que eu prove a comida nas panelas. Que eu aceite os conselhos da loucura. Que transforme a raiva em vontade de me entender. Que o trânsito não seja sauna. Que eu passe a xingar o pai do juiz no estádio. Que meu time não me engane na última hora. Que eu possa assistir shows com meus filhos na garupa. Que eu atinja o segundo andar das ameixeiras. Que eu abra o capô apenas do piano. Que eu não precise fechar as janelas na sinaleira. Que eu visite mais minha sogra.
Que o domingo não termine com o futebol. Que o musgo cresça onde há paredes. Que as heras cresçam onde há muros. Que as escadas cresçam onde há joelhos. Que eu possa caminhar a esmo na respiração. Que eu me levante de bom humor. Que eu possa soltar os vaga-lumes que prendi em potes. Que o governo seja competente para ser esquecido. Que eu faça aniversário de criança nos meus 34 anos. Que o verão seja se afogar em dunas. Que eu não pergunte a uma mulher sua idade ou se está grávida. Que eu me lembre do nome de colegas da infância. Que eu me lembre dos finais dos filmes. Que eu lembre do início dos olhos.
Que eu me lembre de ser feliz enquanto ainda estou vivo.
Fabricio Carpinejar
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